Organização ouviu jovens inseridos na rede de
tráfico de drogas no varejo e comparou perfil com pesquisa feita há mais de 10
anos; hoje, entrevistados vivem relações afetivas mais estáveis.
Negro, jovem,
homem, nascido em família numerosa e chefiada por mulher com baixa renda;
largou a escola e, antes de entrar para o crime, acumulou algumas experiências
de trabalho precárias.
Esse é o perfil
histórico dos adolescentes e jovens inseridos na rede do tráfico de drogas no
varejo no Rio de Janeiro. Algumas características, no entanto, parecem ter
mudado recentemente, de acordo com um estudo divulgado nesta terça-feira.
Aumentou, por
exemplo, o número dos que entraram para o tráfico antes dos 12 anos de idade e
também dos que se dizem evangélicos. Além disso, os traficantes parecem ter um
comportamento mais "família" do que há dez anos.
Essas são
algumas das conclusões de uma pesquisa realizada pela ONG Observatório de
Favelas, sediada no Complexo da Maré, conjunto de favelas no Rio. O estudo
traça o perfil e as práticas de jovens inseridos na rede do tráfico de drogas
no varejo e sugere caminhos para a construção de políticas e ações públicas.
A ONG havia
feito um levantamento similar entre 2004 e 2006, o que permitiu uma comparação
de resultados em alguns pontos.
"Nos
últimos dez anos, vivemos intervenções significativas na segurança pública no
Rio, como a experiência da política de UPP (Unidade de Polícia Pacificadora).
Queríamos saber como elas tinham impactado no perfil e nas práticas das redes
criminosas", diz Raquel Willadino, uma das coordenadoras do estudo.
Desigualdade
de sempre
Foram
entrevistados 150 jovens inseridos na rede do tráfico de drogas no varejo em
favelas do Rio e 111 adolescentes no Departamento Geral de Ações
Socioeducativas (Degase).
A UPP não
impactou no perfil dos "funcionários" do tráfico. "O que
observamos foi uma reiteração de desigualdades que tínhamos identificado
antes", diz Willadino.
A maior parte
dos ouvidos (62,8%) tinha entre 16 e 24 anos, se identificava como preta e
parda (72%). As mães foram majoritariamente citadas como responsáveis pela
criação dos entrevistados (50,2%).
Também segue
sendo verdade que os jovens deixam a escola na mesma faixa de idade em que
entram para o tráfico. "Isso mostra que temos uma escola que não atrai o
jovem, o que é fundamental para pensar estratégias preventivas", diz a pesquisadora.
Além disso, diz
o estudo, a maior parte teve outros trabalhos antes de entrar para o tráfico.
"O que importa é muito mais a precariedade do tipo de trabalho ao qual
tiveram acesso", observa Willadino.
Criança
e traficante
Um número maior
de entrevistados disse ter entrado para o tráfico antes de fazer 12 anos:
passou de 6,5% em 2006 para 13% em 2017. Não estava no escopo da pesquisa
tentar explicar o porquê, mas isso chamou a atenção dos entrevistados.
A maior parte,
no entanto, ainda entra para o tráfico entre os 13 e os 15 anos.
Além disso,
aumentou o número de irmãos envolvidos no tráfico: de 11,7% para 21,1% dos
entrevistados.
"Esses
resultados reforçam a relevância do desenvolvimento de políticas preventivas
voltadas para a infância e a adolescência e de iniciativas que levem em conta
vulnerabilidades do contexto familiar", diz Willadino.
"Isso não
quer dizer que a raiz do problema esteja na família. Observe que 55% das
famílias não têm nenhum membro em atividades ilícitas, mas tampouco se pode
ignorar", diz a pesquisadora.
Traficantes
evangélicos e vínculos estáveis
A proporção de
católicos e evangélicos se inverteu em dez anos: 31,1% dos entrevistados
afirmaram ser evangélicos; 11,1 % católicos e 1,5% de religiões de matriz
africana.
Na pesquisa
anterior, 39,13% eram católicos e 17% evangélicos – além disso, 40% dos ouvidos
em 2017 disseram não ter religião, mas acreditam em Deus, predominância que já
fora identificada antes.
Um aspecto que
chama a atenção é a presença de um vínculo significativo com a família. Muitos
citam, como motivação para o ingresso no tráfico, a possibilidade de ajudar a
família.
Além disso, a
grande maioria dos entrevistados vive relacionamentos afetivos estáveis
(70,2%), seja com esposas ou esposos (37%) ou namoradas e namorados (33%).
"Na
pesquisa anterior, aparecia muito (no discurso dos entrevistados) a
possibilidade de acesso a muitas mulheres. Esse discurso não aparece mais com
tanta força. Ao contrário, quando falam da configuração familiar, muitos falam
que vivem com o cônjuge e têm relações estáveis", diz.
"A família
aparece também como fator essencial para a construção de saída do
tráfico", diz ela.
Quando falam
das perspectivas de saída do tráfico, citam as relações afetivas –
companheiras, nascimento de filhos, por exemplo.
Nos dois
estudos a proporção de jovens que em algum momento chegaram a deixar o tráfico
de maneira voluntária foi a mesma: 40%.
"Isso
mostra que o difícil não é a decisão de saída. O desafio é desenvolver
políticas de formação profissional, de geração de trabalho e renda. Justamente
porque têm baixa escolaridade e são estigmatizados por terem passado pelo
tráfico, têm dificuldade de acesso a oportunidades."
Por
que jovens entram para o tráfico?
"O que
aparece com mais força é uma articulação entre motivações econômicas e a
perspectiva de contribuir para o sustento da família", diz Willadino.
62,1% dizem que
entram para ajudar a família e 47,5%, "para ganhar muito dinheiro".
"De modo
geral, podemos perceber que a principal motivação para o ingresso nessa
atividade diz respeito à possibilidade de receber um volume de recursos
financeiros que dificilmente seria possível para esses jovens, seja no mercado
formal ou mesmo informal", diz o texto.
Há também uma
dimensão de pertencimento de grupo. A relação com amigos (15,3,%) foi o
terceiro fator mais citado, seguido pela adrenalina decorrente da atividade
(14,6%).
Afinal,
o que mudou com as UPPs?
A pesquisa
também busca retratar as configurações das redes criminosas após a instalação
das UPPs. Com base nas entrevistas com os jovens, com profissionais da área de
saúde e com três policiais, aponta mudanças que aconteceram por causa das UPPs
e outras cuja explicação não passa necessariamente por ela.
O estudo
ressalta que as opiniões dos policiais não podem ser lidas como um reflexo do
que pensa a corporação, dado que apenas três foram ouvidos.
Os policiais,
profissionais de saúde e jovens traficantes entrevistados acreditam que alguns
dos principais objetivos das UPPs, como a redução de confrontos e a construção
de uma relação de confiança com os moradores, não foram alcançados. A
iniciativa também não resultou na redução da presença de armas nas favelas,
disseram os ouvidos.
No entanto, os
entrevistados dizem ter observado redução, num primeiro momento, na quantidade
de mortes em lugares com UPP.
Eles acham,
ainda, que houve mudança na dinâmica do tráfico de drogas: migrações para
outras favelas, deslocamento para outros crimes, como, por exemplo, o roubo de
cargas, o desenvolvimento de estratégias para que a venda de drogas continuasse
a existir, mas de forma menos visível nas áreas de UPPs e mudanças nas cenas de
consumo.
A pesquisa
identifica algumas críticas comuns ao projeto. Uma delas, feita por acadêmicos,
é a de que as UPPs foram se expandindo antes de estarem claras na lei.
"A
estrutura normativa se limitou por muito tempo a decretos governamentais
pontuais que não permitiam a caracterização e sistematização de um modelo claro
com o estabelecimento de mecanismos de monitoramento e avaliação. O programa só
foi publicado de forma um pouco mais detalhada no ano de 2015, quando já havia
38 UPPs. Isso revela que houve inversão de etapas e uma boa dose de improviso
no processo de implantação das UPPs no Rio", escrevem os pesquisadores.
Outra crítica
comum que é reiterada no estudo é a de que a escolha de onde as UPPs seriam
instaladas não seguiu o critério da mancha criminal, mas para garantir
condições de segurança pública para realizar a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos
Olímpicos em 2016.
"Eu falo
que, no fundo, o processo das UPPs é um marco de política governamental com
viés político eleitoral", diz um policial.
Procurada pela
BBC News Brasil, a Secretaria de Segurança Pública afirmou que não comentaria
decisões das gestões anteriores.
No entanto, o
atual secretário, general Richard Nunes, é crítico da política e já disse achar
que as UPPs cresceram para atender a interesses eleitorais.
Ele vem fazendo
um "realinhamento" das unidades, extinguindo algumas e redistribuindo
o efetivo policial.
A reportagem
procurou o ex-secretário responsável pela implementação do programa, José
Mariano Beltrame, mas não obteve resposta até a publicação deste texto.
A
ascensão da milícia
Mas houve
outras mudanças significativas que não podem ser vinculadas às UPPs de forma
tão clara, diz o estudo. A principal delas, citada com grande preocupação pelos
policiais ouvidos, é o fortalecimento das milícias.
A ONG diz que,
após um momento de combate a esses grupos, após a CPI das Milícias, em 2008,
eles foram deixados de lado quando o foco virou a política de UPPs. Os
entrevistados acham que ela não priorizou áreas dominadas por milícias.
Procurada pela
BBC News Brasil, a Secretaria de Segurança Pública afirmou que não comentaria
decisões das gestões anteriores.
No entanto, o
atual secretário, general Richard Nunes, é crítico da política e já disse achar
que as UPPs cresceram para atender a interesses eleitorais.
Ele vem fazendo
um "realinhamento" das unidades, extinguindo algumas e redistribuindo
o efetivo policial.
A reportagem
procurou o ex-secretário responsável pela implementação do programa, José
Mariano Beltrame, mas não obteve resposta até a publicação deste texto.
"Se elas
cresceram é porque economicamente elas se fortaleceram, estão cheias de fuzis
novos; quer dizer, tem uma estrutura econômica por trás disso, senão não
poderia se comprar aqueles fuzis novinhos – que são comprados em dólar,
naturalmente. Então, há uma estrutura de organização que, mesmo depois de uma
CPI das milícias, cresceu. A CPI não produz nenhum tipo de enfraquecimento,
pelo contrário. Você prendeu as pessoas, mas, a estrutura criminosa parece que
se fortaleceu", diz um policial.
A ONG sugere
que sejam levadas em conta as recomendações propostas pela CPI e,
especialmente, medidas que visem fragilizar os braços econômicos e políticos
desses grupos.
Milícia
e tráfico cada vez mais parecidos
Os
entrevistados também dizem que cada vez mais os traficantes adotam modos de
atuação que eram reconhecidos como característicos da milícia e vice-versa.
Grupos
vinculados ao tráfico passaram a explorar serviços para diversificar suas
atividades econômicas; por outro lado, em algumas áreas, milícias passaram a
explorar o tráfico de drogas.
"Há
relatos de áreas em que estes grupos estão em confronto aberto e outras em que
estão se associando. No entanto, destaca-se que estas relações são fluidas,
frágeis e muito dinâmicas, de modo que não é possível identificar padrões
definidos", diz o estudo.
Fonte: G1
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